sábado, 12 de abril de 2008

1. Lei universais não conhecidas - Kafka e o Direito

1. Lei universais não conhecidas

Kafka fala de um Direito que já se encontra positivado e que tem como premissa ser de conhecimento de todos, uma vez que tem acesso público. Porém esse Direito apesar de poder ser conhecido, tem um caráter secreto e velado, que é reforçado não só pelos juristas, mas por aqueles que fazem as leis. Há uma forte contradição entre aquilo que o Direito deveria ser, para aquilo que ele é. Kafka se ocupa justamente de como o Direito é, e muitas vezes procura mostrar por absurdo como o Direito não deveria ser.
As leis devem ter um caráter universal, porém não são conhecidas do povo. O autor joga com o paradoxo do não conhecimento e do respeito às leis. Assim diz no conto “Sobre a questão das leis”: “Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com exatidão, mas é extremamente penoso ser governado segundo leis que não se conhecem”[1].
O Direito somente pode ser aplicado porque há a presunção que todos os conhecem, não podendo se esquivar do seu conhecimento, a não ser em hipóteses excepcionais. Essa presunção se torna cada dia mais difícil em um mundo cada vez mais regrado por leis, que estipulam as condutas humanas nos mínimos detalhes. A corrida da positivação das leis que se inicia no século XIX marca a situação do crescimento das condutas regradas e das alterações legais constantes. Há mais leis e elas mudam mais rápido.
A lei que é para ser conhecida de todos se torna segredo, pois somente poucos têm acesso ao seu conteúdo. Os juristas passam a deter o domínio da lei, que pode ser mais bem manipulado e dominado por aqueles que detém o poder de comando da sociedade. Assim a dominação é feita também através do Direito. Weber irá denominar esse tipo de dominação de dominação burocrática-legal[2]. Essa dominação é mais refinada do que uma dominação religiosa em que as leis são dadas por uma esfera transcendental, e são seguidas em um mundo místico. Porém nenhuma delas deixa de ter o componente do secreto, para que a dominação seja mais eficaz.
Em uma sociedade dita democrática o que é colocado em destaque é a questão da transparência nos atos dos governantes e de seus funcionários diretos e indiretos, visando dar amplo conhecimento das decisões tomadas. O segredo nas questões políticas deve ser evitado, assim como no Direito. A democracia como sistema de governo exige para a sua real implantação, um Direito que seja conhecido pelo povo. Só assim o povo pode se utilizar das leis estatais e também ser punido através dessas, quando cumprido um processo previamente determinado para tal.
Porém o segredo subsiste em sociedades democráticas ou não, pois parece ser inerente as questões políticas. Carl Schmitt rasgando as entranhas do poder estatal, vê nos miúdos do poder a necessidade do segredo[3]. Segredo que permanece na mão dos detentores do poder na sociedade, que fazem do segredo mais um aparato para a dominação, conjuntamente com a lei.
A lei será respeitada uma vez que é um instrumento de dominação, mesmo não sendo conhecida pelo povo. Essa dominação é eficiente, porém não deixa de ser penoso ao povo respeitar as regras que não conhecem. Isso ocorre não porque seja necessário o conhecimento das leis, mas sim pela possibilidade das leis mudarem de acordo com aqueles que detém o segredo, ou seja, daqueles que fazem as leis.
Kafka propõe em diversas obras a possibilidade de não existência da lei, que muitos do povo procuram. Diz o autor: “Aliás essas leis podem na realidade ser apenas presumidas”[4]. Isso porque a lei é um segredo e pode não ter sido criada por aqueles que fazem a lei. Assim a busca pela lei se torna algo incerto e desesperador, pois a esperança de encontrar a lei pode ao fim da busca mostrar-se em vão. Esse é o drama narrado no conto “Diante das leis”.
Um homem do campo pede para entrar na Lei, porém há um guarda que não autoriza sua entrada, mas sinaliza com a possibilidade de um dia o homem poder entrar pela porta que o leva a lei. A busca pela lei é levada ao extremo e consome a vida do homem do campo. Com a morte lhe batendo a porta, o homem na sua incansável busca pergunta ao guarda que lhe veta a entrada: “Se todos aspiram à lei, como é que durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar? O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido inerte. Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”[5].
Resta a dúvida se a lei existia mesmo, uma vez que para quem se destinava, foi vetada a entrada, apesar da insistência. Ao homem resta a angústia de ter diante de si a lei e não poder alcançá-la. Kafka mostra de modo extremo como a esperança por alcançar a lei, pode ser utilizada como elemento de dominação e neutralização de outras possíveis condutas humanas. Esperando uma lei que não vem, o homem se mantém inerte. O conto torna-se dramático, pois se sabe o final, a lei não é alcançada. A fé depositada na Justiça se esvai.
Kafka através das lentes da literatura aumenta o drama do homem me busca da lei, ao colocar a lei que deveria ser universal como um instrumento individualizado. A lei que o homem busca e entende como feita para todos, e apenas feita para ele.
[1] KAFKA, Franz. Sobre a questão das leis. P,
[2] WEBER, Max. Economia e Sociedade. P,
[3] SCHMITT, Carl. O conceito do político.
[4] KAFKA. Sobre a questão das leis. P,
[5] KAFKA, Franz. Diante da lei. P,

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