sábado, 12 de abril de 2008

Sobre a questão das leis - Texto Kafka

Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com exatidão, mas é extremamente penoso ser governado segundo leis que não se conhecem.
Não penso neste caso nas diferentes possibilidades de interpretá-las nem nas desvantagens que há quando apenas indivíduos e não o povo inteiro podem participar da sua interpretação. Talvez essas desvantagens não sejam tão grandes assim.
As leis são de fato muito antigas, séculos trabalharam na sua exegese, certamente até essa interpretação já se tornou lei, na verdade continuam a existir as liberdades possíveis no ato de interpretar, mas elas são muito limitadas.
Além do mais é evidente que a nobreza não tem motivo algum, na interpretação, para se deixar influenciar pelo interesse pessoal em detrimento do nosso, pois as leis foram desde o início assentadas para os nobres, a nobreza está fora da lei e precisamente por isso a lei parece ter sido posta com exclusividade nas mãos da nobreza. Naturalmente existe sabedoria nisso – quem duvida da sabedoria das velhas leis ? - , mas é também um tormento para nós, provavelmente algo inevitável.
Aliás essas leis aparentes podem na realidade ser apenas presumidas. É uma tradição que elas existam e sejam confiadas à nobreza com um segredo, mas não se trata nem pode tratar-se de mais uma tradição antiga e, por sua antiguidade, digna de fé, pois o caráter dessas leis exige também que se mantenha o segredo da sua existência.
Mas se nós do povo acompanhamos com atenção desde os tempos mais remotos as ações da nobreza, possuímos a respeito delas registros dos nossos antepassados, demos a esses registros um prosseguimento consciencioso e acreditamos reconhecer nos inúmeros fatos certas normas que permitem concluir esta ou aquela determinação histórica, e se procurarmos nos orientar um pouco por essas conclusões filtradas e ordenadas da forma mais cuidadosa em relação ao presente e ao futuro – então tudo isso é incerto e quem sabe somente um jogo mental, uma vez que essas leis, que aqui tentamos advinhar, talvez não existam de maneira alguma.

Há um pequeno partido que realmente pensa assim e busca provar que, se existem uma lei, ela só pode rezar o seguinte: o que a nobreza faz é lei. Esse partido vê apenas atos de arbítrio dos nobres e rejeita a tradição popular que, na sua opinião, só traz proveitos diminutos e casuais e na maior parte das vezes, pelo contrário, grave prejuízo, já que ela dá ao povo uma segurança falsa, enganosa, que leva à leviandade diante dos acontecimentos vindouros.
Esse prejuízo não deve ser negado, mas a esmagadora maioria do nosso povo vê a causa disso no fato de a tradição ainda não ser nem de longe suficiente, havendo portanto necessidade de que muito mais nela seja pesquisado; de qualquer maneira, por mais gigantesco que pareça, seu material ainda é muito pequeno e séculos terão de passar antes que a tradição acumulada baste.
O sombrio dessa perspectiva para o presente só é iluminado pela crença de que virá um tempo no qual – de certo modo com um suspiro – a tradição e seu estudo chegarão ao ponto final, que tudo terá ficado claro, que a lei pertencerá ao povo e que a nobreza desaparecerá. Isso não é dito, porventura, com ódio da nobreza – em absoluto e por ninguém. Odiamos antes a nós mesmos porque ainda não podemos ser julgados dignos da lei. E na verdade foi por essa razão que aquele partido- muito sedutor em certo sentido - , que não acredita em nenhuma lei propriamente, permaneceu tão pequeno: porque também reconhece plenamente a nobreza e seu direito à existência.
A rigor só é possível exprimi-lo numa espécie de contradição: um partido que rejeitasse, junto coma crença nas leis, também a nobreza, teria imediatamente o povo inteiro ao seu lado, mas um partido como esse não pode nascer porque ninguém ousa rejeitar a nobreza.

É esse o fio da navalha que nós vivemos. Certa vez um escritor resumiu isso na seguinte maneira: a única lei visível e indubitavelmente importa a nós é a nobreza – e será eu queremos espontaneamente nos privar dela?

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